Para quem carrega mais de cinco dezenas de primavera nas costas, como eu, é difícil entrar no agora reformadíssimo restaurante Aurora, em Botafogo, e não ser fulminado – para além dos aromas fumegantes que exalam da cozinha portuguesa – por sensações e sentimentos de pura nostalgia.
A mim, os que vêm primeiro são os sons e as cores estudantis do começo dos anos 90, quando lá nos entregávamos às nossas primeiras rodadas de chope, pizza e paixões juvenis. O barulho das portas da geladeira secular, a abrir e fechar durante o serviço apressado do balcão. O ranger da escada de madeira escura e empenada, que dava até medo quando subíamos ainda sóbrios ao mezanino, para mais uma noitada de conversa e cantoria marcada pelo bater dos pés no chão. Além de fazer música, nossas solas na madeira fina serviam para chamar a atenção dos garçons lá embaixo. Entre eles o Militão, que aliás está lá até hoje…
A verdade é que no novo Aurora muita coisa ainda “está lá até hoje”. A começar pelo espírito do lugar, que funciona como “tradicional casa de pasto” desde junho de 1898. Há 126 anos rigorosamente no mesmo lugar, com a mesma fachada, o mesmo lustre central no salão e até mesmo alguns itens que, reza a lenda, jamais saíram do cardápio – lá mais conhecido como a lista “do prato nosso de cada dia”.
Todo esse cuidado com o passado vem de alguém que é a encarnação do futuro do negócio. Desde 2013, quando o Aurora foi comprado pelo Grupo Garota (dono de diversos bares clásssicos da cidade, entre eles o Veloso e do Filé do Lira), a comandante do dia-a-dia da casa é a chef Ana Beatriz Capão, a Bia, filha do patriarca do grupo. Hoje com 38 anos, Bia assumiu o Aurora ainda jovem e com pouca experiência, quase por “imposição” da família, segundo ela. Chegou a pensar em desistir do duro desafio, mas perseverou. “Cresci aqui dentro, como chef e como pessoa. E além de aprender entendi que, num lugar como esse, renovar é tão importante quanto preservar a memória”, diz ela.
Além de recuperar itens que andavam esquecidos ou desvalorizados nas panelas centenárias, foi Bia quem liderou a longa reforma do Aurora, que incluiu um esforço quase arqueológico para manter a casa de pasto o mais parecida possível com a que foi inaugurada 126 anos atrás, só que muito melhor. Nessa operação que durou mais de um ano, entre 2014 e 2015, o tal mezanino que quase me derrubava nas noites da juventude também foi inteiramente renovado. E de lá saiu uma redescoberta emocionante: a placa em homenagem a Samuel Wainer Júnior, o Samuca, filho do lendário jornalista Samuel Wainer, fundador da Última Hora, e da inesquecível colunista Danuza Leão.
Frequentador assíduo da casa, Samuca morreu num acidente automobilístico em 1984, quando voltava num carro de reportagem da TV Globo da cidade de Macaé, onde havia ido cobrir um outro acidente terrível: a queda de um avião que matou 13 pessoas, também jornalistas e técnicos como ele, que estavam viajando para visitar uma plataforma de petróleo da Petrobras. A tragédia dupla ficou marcada como um dos episódios mais tristes do jornalismo brasileiro. Eu, que fui assistente da Danuza na redação do Jornal do Brasil no fim do século passado, sei o quanto ela sentia a perda do filho. Essa placa, instalada no mezanino do Aurora em 1986, sumiu com o tempo e foi achada 28 anos depois, suja, apagada e sufocada sob várias camadas de tinta. Imediatamente recuperada, hoje ela é um orgulho da história mais recente do Aurora.
Mas há outros orgulhos por lá: como a feijoada clássica, feita fora da panela de pressão e sem vergonha de mostrar os pés e as orelhas. Ou o fígado à lisboeta – um daqueles pratos que têm cheiro e gosto de tempos que não voltam mais -, e a ex-demodê língua com purê, por muito tempo mantida na carta apenas para agradar poucos mas fiéis clientes antigos, e que agora voltou à moda na cidade e anda bombando nas caçarolas. E sem falar no famosíssimo Mineiro de Botas, um omelete doce com queijo minas, goiabada e açúcar queimado, simbólico do Aurora mais ancestral. “Um dia, ainda recém-chegada, tentei tirar o açúcar da receita, para deixar a sobremesa mais ‘leve e moderna’. Choveu reclamação…. Ali eu comecei a entender o valor da memória”, lembra Bia.
Mas que se registre: o Aurora, nem de longe, olha apenas para trás. A estufa lotada de novas delícias criadas pela chef e dedicadas aos clientes da noite e da madrugada da esquina eternamente boêmia da Capitão Salomão com a Visconde de Caravelas não me deixa mentir. Com seus risoles (ou “rissóis”, no português luso que o cardápio preserva) de camarão e de leitão à bairrada, e as impressionantes empadas de cozido e de frango ensopado – essa a minha preferida.
Em suma: cozinha afetiva na veia, caro leitor. Nisso, tanto o Aurora de ontem quanto o de hoje são mestres. E me parece que os dois, juntos, estão trilhando o caminho certo para o alvorecer do Aurora de amanhã. Que venham mais 126 anos.