É sempre uma deliciosa surpresa perceber que, quanto mais se pesquisa a história da boemia carioca, mais se descobre o poder o acaso na trajetória de muitos ícones da cidade.
Quarenta anos e pouco mais de uma semana atrás, em agosto de 1984, um certo senhor Holf Pfeffer, alemão que trabalhava no Rio fabricando cerveja, resolveu abrir um bar para chamar de seu. Um boteco germânico, como ele dizia, que servia chope cientificamente bem tirado, kasslers, eisbeins e outros típicos petiscos da terra de Goethe, em plena Santa Teresa, com o bonde passando na porta.
A empreitada do seu Pfeffer – seu Pimenta, em português – fez sucesso, e a Adega do Pimenta ficou famosa, especialmente entre admiradores de chope bem tirado e aguardentes europeus, numa época em que nem um nem outro eram lá muito fáceis de encontrar com qualidade na cidade. Mas quis o destino que, nos idos de 1992, o seu Pfeffer subitamente falecesse… O bar então ficou meio à deriva, perdendo o rumo dos chopes e das comidas.
Ocorre que pouco depois, em 1994, um outro sujeito – esse brasileiro, mas também apaixonado por cerveja, pela Alemanha, pelos salsichões, pelos schnaps europeus, e cliente assíduo do bar desde 1986 – também andava meio sem rumo. O engenheiro eletrônico William Guedes tinha acabado de sair de um emprego de décadas numa multinacional, tentado um negócio que não deu certo, e agora não sabia muito bem o que fazer da vida. Numa tarde qualquer, foi ao seu bar preferido em Santa Teresa apenas para refletir tomando um chope. Aí, do nada, recebeu a proposta: a Adega do Pimenta, em decadência desde a morte do fundador, estava à venda. E ele, um executivo que jamais havia pensado em trabalhar com gastronomia, aceitou o desafio. Nasceu ali, definitivamente, a Adega do Pimenta como conhecemos hoje: o bar alemão com sotaque brasileiro que é um dos símbolos de Santa Teresa, criou raízes também no Leblon, fez fama em Itaipava e acaba de completar 40 anos de fundação no último 9 de agosto.
Muita gente acha que o William é o Seu Pimenta em pessoa. Tem até quem ache que é o Fábio, filho mais velho, que pilota os cardápios e a relação com o público fiel e apaixonado tanto da adega de Santa quanto do Herr Pfeffer do Leblon. Não são eles, claro. Mas bem poderiam ser. Porque a forma com a qual o pai, o filho e os outros dois irmãos – Gustavo e Letícia – administram os negócios cervejeiros, joelheiros, batateiros e salsicheiros da Adega do Pimenta chama mesmo atenção pela disciplina.
Dedicadamente germânicos, mesmo sem serem, os quatro passaram os últimos 28 anos burilando com cuidado uma casa que começou caótica e hoje responde orgulhosa pelo posto de melhor chope Brahma do Rio, segundo avaliação feita ano passado pela própria Ambev, entre os 50 mais importante vendedores da bebida na cidade. O orgulho dessa história a gente vê nas paredes. No quadro que expõe o processo de fabricação de cerveja, pendurado quase ao lado da relíquia que um dia o mestre Selarón – tal qual um certo Picasso em Montmartre – trocou por alguns pratos de comida. Nos anúncios antigos de cerveja que se espalham pelo salão. E nas torneiras, conectadas a serpentinas perfeitamente reguladas, que por sua vez conversam com barris precisamente pre-resfriados. O chope é tão acarinhado no lugar que ganhou até uma versão única: o bicolor, um copo que vem com chope escuro embaixo e claro em cima. Uma invenção que só lá no Pimenta mesmo.
Mas além do chope, não se pode visitar a Adega do Pimenta sem experimentar os schnaps. O aguardente típico do centro e do leste europeu é uma marca da casa há décadas, graças ao amor do William pela bebida. Não há boêmio que se preze no Rio que nunca tenha passado uma tarde conhecendo a coleção de slivovitz, steinhagens, becherovkas e vodkas que o proprietário mantém com carinho há anos. É claro que já houve tempos mais fartos. No fim dos anos 90, quando dólar estava um pra um, as viagens eram constantes e os clientes, muito mais generosos, a Adega do Pimenta chegou a ter um cardápio com 120 rótulos de aguardentes europeus. Hoje são só 20, mas ainda assim a casa responde pela melhor coleção de bebiodas do gênero do Rio.
A seleção é tão cuidadosa que os meus parentes da família Becosa, o steinhager brasileiro vagabundo que inspirou o meu nome de guerra, não passam nem na porta… A Adega do Pimenta é pra quem bebe bem e com classe. Há 40 anos.