O centro da cidade de uma metrópole com quase 460 anos de idade pode e dever guardar algumas de suas mais importantes relíquias. No Rio não é diferente. Mas tem um segmento dessa história que anda sofrendo bastante. Desde a pandemia – que uniu-se aos novos grilhões digitais para nos escravizar dentro de casa e destronar a rotina agitada e secular da Rio Branco e imediações – muitos clássicos do comércio carioca, alguns com mais de 100 anos de idade, andam desaparecendo. Muitos sem direito sequer a um réquiem decente.
Por demais óbvio, portanto, que os sobreviventes desse massacre mereçam toda a nossa consideração. Um deles está fazendo neste mês de agosto de 2024 singelos 111 anos de existência. E, muito acertadamente, decidiu comemorar com estardalhaço. Logo ele, um lugar que nunca foi dos mais espalhafatosos, ainda que sempre dos mais consistentes.
Falo da Casa Urich, caro leitor. Bar e restaurante inaugurado em 1913 que hoje pode se considerar a segunda mais antiga casa alemã em atividade no Rio – mais jovem apenas que o Bar Brasil, na Lapa, aberto em 1906. Seus kasslers, eisbeins, schnitzels, chucrutes, salsichões e chopes gelados começaram a ser servidos na rua 7 de Setembro, pelas mãos do fundador, o imigrante alemão Edmund Urich. Mas tudo isso é história que se encontra facilmente na capa interna do cardápio. Interessante mesmo é observar que, desde 1945, quando mudou-se para o endereço atual na Rua São José, a Urich é administrada germanicamente por… espanhóis.
Os irmãos Marisa e Orlando Oreiro são hoje os responsáveis pela casa. Orlando trabalha lá desde 1992. Era seu pai e outros sócios que tocavam o lugar. Mas ele não ia bem. A tradição alemã já se esvaía pelas tabelas e a Urich esteve à beira de ser vendida quando Orlando resoveu pegar o touro (ou seria o Schwein?) à unha. E aos poucos foi renovando a casa, e afastando a decadência.
Em 2002, com a chegada da Marisa, a Urich reformou completamente o cardápio, adotando pratos mais populares no Brasil, atraindo frequentadores mais jovens, mas sem perder a essência alemã. Manteve-se assim até hoje, superando os momentos difíceis com uma clientela fiel que tem nos advogados o seu principal símbolo. Procuradores, juízes e promotores foram por décadas são quase tão numerosos naquele salão quanto os azulejos brancos, planejados pelo arquiteto espanhol Francisco Riviera nos anos 40.
Nas primeiras duas décadas deste século, a Urich bombou de segunda a sexta nos almoços e nas happy hours concorridas deste centro de outrora, com uma clientela diversa de gravatas, ternos, tailleurs e outros figurinos. Mas tudo mudou com a pandemia. Sem clientes, e sem delivery, a Urich quase faliu de novo. Só não aconteceu porque os velhos clientes, menos sensíveis aos riscos do contato social e menos simpáticos à ideia do home-office, mantiveram um movimento mínimo na casa entre 2021 e 2022. E hoje, com o centro definitivamente encolhido e a concorrência reduzida, consegue se manter como uma referência de qualidade gastronômica e boêmia na região. Preservando um movimento que não chega aos pés dos áureos tempos, mas permite manter a cozinha e as torneiras de chope claro e escuros sempre muito bem tirados à todo o vapor. Até porque os advogados – pelo menos eles – continuam por lá…
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Neste mês em que comemora 111 anos, a Casa Urich fez uma homenagem aos velhos frequentadores: preparou um cardápio especial que resgata pratos clássicos que andavam esquecidos. O mais marcante deles é a cara do centro do Rio de outros tempos: língua com purê de batatas ao molho madeira, minuta que outrora se podia achar em qualquer esquina, mas que hoje anda bem rara.