Durante mais de 70 anos, o Café Rio Paiva, tradicional botequim familiar do Centro da cidade fundado em 1909 às margens do Morro da Conceição, nunca vendeu cerveja Brahma. O motivo: uma desavença nunca resolvida entre seu fundador, o temperamental João Nunes da Silva, e um vendedor da antiga fábrica de cerveja, lá nos idos da década de 30.
Quando seu João morreu, no começo dos anos 50, seu filho mais novo, Joaquim, assumiu o negócio. Com dois compromissos pétreos: nunca vender o bar pra ninguém, e nunca vender cerveja Brahma.
Temperamental igual ao pai, seu Joaquim – mais conhecido como Jóia (assim mesmo, na grafia antiga com acento) – cumpriu a promessa até a morte.
Nasceu assim a “lenda” do Botequim do Jóia, um dos bares menos conhecidos, porém mais pitorescos e admirados do universo boêmio carioca do século passado, e que se mantém firme até hoje, apesar de todas as dificuldades.
Nascido e criado no segundo andar do sobrado de esquina onde fica o bar, Seu Jóia era uma figura ímpar. Vivia debaixo do Morro da Conceição, mas odiava samba e carnaval. Seu negócio era música clássica. E, sabe-se lá por quê, detestava jornalista. Consta que um dia, já no fim da vida, ele expulsou a vassouradas um jovem e desavisado fotógrafo do Globo que tentou registrar seu bar, a pedido de um colunista inconsequente…
Duro na queda e nas opiniões, o Jóia alimentou e saciou a sede de gerações de boêmios com cerveja Antárctica, paio no feijão e outros ícones da comida caseira, que ele chamava por apelidos politicamente incorretíssimos. Peito de frango, lá, era “seios de galinha”. E por aí ia…
Jóia trabalhava quase sempre de bermuda de brim, muitas vezes sem camisa mesmo, no salão modesto e cravejado de escudos do Botafogo e fotos de mulher pelada. Mas aos sábados à noite, pontualmente vestia o melhor paletó que tinha com a gravata borboleta impecável e seguia a pé para o Municipal, onde ia curtir sua maior paixão depois do futebol: a ópera.
Não por acaso, hoje já se somam mais de 50 anos que os fregueses do Bar do Jóia comem e bebem ao som ininterrupto música clássica. Mesmo depois de sua morte – e com o advento das rodas de samba e choro que renovaram a clientela – o costume é mantido pela sua ex-companheira, dona Alayde, que faz questão de deixar o bar exatamente como o Jóia deixou, quando partiu em 2007. Tudo bem que as fotos de mulher pelada já não são tão numerosas nem explícitas. Afinal, os tempos são outros. Já os escudos do Botafogo cresceram em tamanho e quantidade. Afinal, os tempos são outros…
O Jogo da Baratinha
Uma das tradições do Jóia que infelizmente não se manteve – também porque os tempos são outros… – foi o Jogo da Baratinha. Uma criação dele próprio, lá nos idos dos anos 70, que atraía rios de gente ao bar nos tempos em que a Rua Lopes de Almeida pululava de funcionários públicos e trabalhadores de bancos e grandes corporações. O Jogo da Baratinha era uma típica jogatina de boteco, que consistia no flanar de dados de pôquer sobre um tabuleiro improvisado no papel de mesa onde se sobressaía o desenho do corpo acéfalo e despernado de uma baratinha.
O jogo dos dados dava aos que tiravam um ás o direito de preencher as partes faltantes (e delirantes) do pequeno artrópode: as pernas, o “rabo”, a “cabeça” e os olhos. Quem completasse o corpo todo primeiro começava a beber de graça. E o último colocado era amaldiçoado com a conta da rodada.
O Jogo da Baratinha fez tanto sucesso que chegou a protagonizar concorridos campeonatos, todos com sede no Bar do Jóia. Com a morte do dono, seguido da decadência da região, o costume foi se esvaindo. E hoje cabe a raros frequentadores antigos a honra de guardar consigo a memória desses tesouros.
Um deles é o Márcio Pedreira, que frequenta a casa desde 1995.
Márcio tornou-se amigo do Jóia e de dona Alayde e hoje é um dos integrantes mais ativos da “mesa da diretoria”, que reúne os fãs mais imperdenidos do botequim. Há anos eles trabalham para criar formas de aumentar a clientela e as vendas. Uma delas, muito bem sucedida, são os Sambas do Aposentado, as rodas de samba e choro que acontecem quinzenalmente nos almoços de sexta-feira, organizadas pelo músico, frequentador e vizinho do bar Zeh Gustavo (@zeh.gustavo).
Nesses dias, o feijão acaba. Mas dona Alayde não se ilude: “Ele deve se revi